Análise 24/10/2022

Em 26 anos, expectativa de vida aumenta 6,8 anos e mortalidade cai 34% no Brasil, mas doenças crônicas, acidentes de trânsito e mortes violentas aumentam

É o que mostram os dados brasileiros do estudo Global Burden of Disease (Carga Global de Doença) de 2016, que avaliou as mudanças no perfil de saúde da população entre 1990 e 2016


Em 1990, apenas dois anos depois da criação do Sistema Único de Saúde (SUS), a expectativa de vida média do brasileiro era de 68,4 anos. A cada 100.000 habitantes, 1116,6 brasileiros morriam precocemente. A ameaça começava logo ao nascer: muitos bebês faleciam em decorrência de partos prematuros e outras complicações neste início da vida. Na infância e na idade adulta, as principais ameaças eram diarreias e doenças transmissíveis, além de infecções respiratórias. Desigualdades sociais, econômicas e regionais, além de dificuldade de acesso ao sistema de saúde que começava a ser implementado ao longo do país, contribuíram para esse quadro, similar ao de países de baixa renda. 

Em 2016, o cenário mudou substancialmente. Os brasileiros passaram a viver, em média, até os 75,2 anos, ganhando 6,8 anos para desfrutar mais tempo no planeta. A taxa de mortalidade caiu 34%: 737 mortes a cada 100.000 pessoas. As mortes ao nascer pularam da terceira para a décima causa de morte e as doenças cardíacas isquêmicas, aquelas causadas pelo estreitamento das artérias do nosso coração, derrubaram as doenças infecciosas e diarreias do posto de principais causadoras de mortes entre os brasileiros. E duas novas causas passaram a figurar entre as três primeiras do ranking de mortalidade: acidentes de trânsito e violência interpessoal.

Essas mudanças foram apontadas pela versão brasileira do estudo Global Burden of Disease (GBD) 1990-2016: uma sistemática análise subnacional para a Carga Global de Doenças. Ele fornece a avaliação mais abrangente até o momento dos níveis e tendências de incapacidade e morte no Brasil. Isso porque o GBD, como é chamado, é um programa abrangente de pesquisa regional e global de incidência de doenças que avalia a mortalidade e incapacidade decorrentes das principais doenças, lesões e fatores de risco, numa colaboração de mais de 3600 pesquisadores de 145 países. Destes, 65 brasileiros de diferentes instituições estiveram envolvidos na captação e análise dos dados do Brasil e assinam o estudo (veja os nomes no link para o artigo original na ficha técnica).

Segundo o artigo, as diferenças de perfis epidemiológicos de saúde nos últimos 26 anos acompanharam as mudanças do país, que cresceu economicamente, se tornando mais rico e urbanizado. O sistema público de saúde se expandiu – assim como a cobertura de vacinação de crianças, atingindo 95% delas – a economia cresceu e as políticas públicas foram introduzidas com foco em prevenir fatores de risco para doenças crônicas e  promover a saúde. Mas ainda há muitos desafios, especialmente quando se olha para os dados de outros países e para os indicadores dos estados brasileiros.

Para poder comparar indicadores dos países, o estudo utilizou uma medida chamada  Índice Sociodemográfico (SDI) que varia de 0 a 1. O SDI é uma média composta dos países em termos de renda per capita, escolaridade e taxas de fertilidade. O índice permite avaliar se os resultados de saúde no Brasil foram melhores ou piores do que seria esperado e fazer comparações entre nações, por exemplo.

Quando colocado lado a lado ao SDI de países do grupo dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), o indicador do Brasil, de 0.708, só é maior do que o da Índia (0.584). Entre os vizinhos latino-americanos, o índice é menor do que o do México (0.734) e o da Argentina (0.761), mas maior que o da Colômbia (0.707). O estudo aponta ainda que o SDI brasileiro é bem menor do que outros países que também contam com uma cobertura universal de saúde similar ao SUS, como Canadá (0.908), Austrália (0.892) e Inglaterra (0.866), mostrando que há ainda muita margem para melhorias.

Ao olhar para dentro do país, o estudo constatou que as diferenças de indicadores entre os estados ainda permanecem bem marcadas. Em geral, passados 26 anos, os resultados de saúde são melhores no sul e sudeste em relação ao norte e nordeste, ressaltando as desigualdades regionais. A expectativa de vida, por exemplo, não aumentou de maneira igual ao redor do Brasil. Alagoas registrou o maior crescimento (9.5 anos), mas o Piauí apenas 1.6 anos e o Amapá, 1.8. O Distrito Federal e Santa Catarina são os estados onde as pessoas têm maiores chances de viver mais: 77,8 anos e 76,2 anos, respectivamente.

Já as taxas de mortalidade caíram em todos os estados com exceção de um: o Piauí, que exibiu uma variação praticamente insignificante em relação a 1990. As maiores quedas foram registradas entre os estados do sul: 36% no Rio Grande do Sul e 40,1% em Santa Catarina e sudeste: 37,7% no Espírito Santo e 40,9% em São Paulo. Já as menores reduções foram no Amapá (9,9%) e no Piauí (1,5%).

Outros indicadores avaliados

Além de expectativa de vida, mortalidade e principais causas de morte, os pesquisadores também avaliaram outros três indicadores essenciais para avaliar as mudanças de perfil de saúde da população em 26 anos. Veja abaixo. 

Years of Life Lost (YLL) ou Anos Potenciais de Vida Perdidos (APVP)

Trata-se de uma medida de mortalidade prematura que leva em consideração tanto a frequência de mortes quanto a idade em que ocorrem. Em outras palavras, cada YLL ou APVP representa um ano de vida perdido por alguma morte precoce. O indicador caiu 40,7% em 26 anos. Doenças cardíacas são a principal razão para as pessoas perderem anos de vida, mas a violência, que subiu 42,4% no período, vem logo atrás, seguida de perto por acidentes de trânsito. Entre os homens, atos violentos e o coração lideram como principais causas de mortes precoces na maioria dos estados, com exceção de Tocantins, onde o trânsito é mais letal. Já entre as mulheres, doenças cardíacas continuam roubando mais vidas, excluindo Roraima, onde as infecções respiratórias lideram. Veja mais dados regionais de YLL aqui.

Years Lived with Disability (YLDs) ou Anos Vividos com Incapacidade (AVI)

Este indicador reflete o impacto que uma doença tem na qualidade de vida de uma pessoa antes que ela se cure ou leve o paciente à morte. O conceito de AVI é uma forma de medir e comparar o grau de incapacidade que certa doença causa numa população. O indicador caiu apenas 3% em 26 anos. O perfil de doenças que levam à incapacitação não mudou substancialmente no Brasil desde 1990: muitas das principais causas de AVI continuam sendo as doenças crônicas e não transmissíveis. Dor lombar e cervical, doenças de pele e doenças dos órgãos dos sentidos, como perda de audição e visão, foram as principais causas de AVIs em 1990 e em 2016. A primeira aumentou 79,7% no período, enquanto a diabetes cresceu 117,9%. As maiores taxas continuam no nordeste: Pernambuco em 1990 e no Maranhão em 2016. Veja mais dados regionais de YLD aqui.

Disability-adjusted life years (DALYs) ou Anos de Vida Ajustados por Qualidade de Vida (QALY)

DALY é um indicador que tem o objetivo de estimar o número total de anos perdidos devido a causas específicas e fatores de risco em diferentes níveis: países, regional e mundial. Ele é a soma dos anos de vida perdidos (YLLs) e anos vividos com incapacidade (YLD). Um DALY é igual a um ano perdido de vida saudável. As taxas de DALY padronizadas por todas as causas diminuíram 30,2% no Brasil entre 1990 e 2016. Os principais fatores de risco que contribuíram para roubar anos de vida do brasileiro em 2016 foram o uso de álcool e drogas, a hipertensão e alto índice de massa corporal relacionado ao sobrepeso e à obesidade. Aqui também as doenças transmissíveis, nutricionais, maternas e neonatais deram lugar às doenças crônicas não transmissíveis (DCNTs) como principais fatores de risco. Muitos esforços contribuíram para o declínio das taxas de DALY de 1990 a 2016, como a melhoria do acesso à atenção primária e cuidados para fatores de risco relacionados a doenças crônicas, como hipertensão; acesso a medicamentos gratuitos ou subsidiados para pressão alta, diabetes e asma; e a cuidados e tratamentos para problemas cardiovasculares agudos oferecidos pelo SUS.

Recomendações

Graças à expansão do SUS, ao crescimento da economia e às políticas com foco em fatores de risco para doenças crônicas, os avanços nestes 26 anos são inegáveis. No entanto, a crescente incidência de doenças crônicas e as desigualdades regionais dos indicadores de saúde continuam sendo grandes desafios para a saúde pública brasileira. Isso significa que os recursos financeiros e humanos devem ser melhor distribuídos e alinhados de acordo com as diferentes necessidades de cada estado do país para tentar preservar os ganhos diante do aumento da pobreza e recessão, que o estudo já registrava em 2016 e que tendem a se agravar atualmente no cenário pós-pandemia.


Ficha Técnica

Nome do estudo

Carga da doença no Brasil, 1990-2016: uma sistemática análise subnacional para a Carga Global de Doenças

Autores

65 brasileiros de diferentes instituições estiveram envolvidos na captação e análise dos dados do Brasil e assinam o estudo.

O que é

O estudo fornece a avaliação mais abrangente até o momento dos níveis e tendências de incapacidade e morte no Brasil. Isso porque o Global Burden of Disease (GBD), como é chamado, é um programa abrangente de pesquisa regional e global de carga de doenças que avalia a mortalidade e incapacidade decorrentes das principais doenças, lesões e fatores de risco em diversos países do mundo.

Por que é inovador

O documento traz dados inéditos sobre o Brasil e seus 26 estados e o Distrito Federal, mostrando similaridades e desigualdades regionais importantes e a evolução do perfil epidemiológico de saúde de 1990 a 2016.

Como foi o experimento

Os pesquisadores analisaram as estimativas do GBD 2016 para sete indicadores: expectativa de vida ao nascer, expectativa de vida saudável, mortalidade por todas as causas e causas específicas, anos de vida perdidos (YLLs), anos vividos com incapacidade (YLDs), anos de vida ajustados por qualidade de vida (DALYs) e fatores de risco para o Brasil como um todo, seus 26 estados e o Distrito Federal de 1990 a 2016. Os dados do Brasil foram comparados com indicadores de outros dez países (BRICS, países latinoamericanos e com cobertura universal de saúde).

Principais resultados

O perfil de saúde da população brasileira mudou radicalmente de 1990 para 2016. O Brasil deixou de apresentar um cenário epidemiológico de país de baixa renda - com alta incidência de doenças transmissíveis, diarreicas e respiratórias, além de altas taxas de mortalidade neonatal - e evoluiu para um perfil de alta incidência de doenças crônicas, mais parecido com os de países de média e alta renda. Isso só foi possível graças à implementação, consolidação e expansão do Sistema Único de Saúde (SUS), a um maior acesso aos serviços de saúde, a ciclos de crescimento econômico e às políticas públicas de saúde focadas em prevenir fatores de risco para doenças crônicas. No entanto, o estudo mostra que esses avanços se deram de maneira desigual entre os 26 estados e que ainda precisamos avançar mais para alcançar indicadores similares aos de outros países dos BRICS e aos que oferecem coberturas universais de saúde similares ao SUS, como Canadá, Austrália e Inglaterra.

Aplicações dos resultados em nível nacional e estadual

A crescente incidência de doenças crônicas e as desigualdades regionais dos indicadores de saúde continuam sendo grandes desafios. Isso significa que os recursos de saúde devem ser melhor distribuídos e alinhados de acordo com as diferentes necessidades de cada estado para tentar preservar os ganhos obtidos até 2016 diante da recessão e aumento de pobreza, já identificadas pelo artigo. Além disso, investimentos e recursos devem ser voltados para diminuir a incidência e as consequências de dois novos fatores de risco que se intensificaram nos últimos 26 anos: acidentes de trânsito e violência interpessoal.

Tamanho do problema

Segundo dados da Organização Mundial de Saúde, as doenças crônicas não transmissíveis (DCNTs) são responsáveis por 74% das mortes no Brasil e drenam 5,1 bilhões de reais dos cofres públicos por ano, segundo dados de 2015. A incidência do problema, assim como as taxas de mortalidade e custos para o sistema de saúde podem aumentar ainda mais em decorrência das chamadas síndromes pós-Covid-19, que motivaram o Ministério da Saúde a criar uma nova categoria (CID) para registrá-las. Boa parte delas estão relacionadas a doenças crônicas. Já os acidentes de trânsito, segunda causa de morte em 2016 apontada pelo estudo, tiraram a vida de 32.716 pessoas em 2020, segundo dados do Datasus, sem contar os feridos. Os indicadores de violência também são alarmantes. Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública apontam 41.100 mortes violentas intencionais em 2021.


Artigos Relacionados